Ao que parece, existe uma tábua de conduta, uma planilha que rege as falas e atitudes de nossos cronistas. Imagine você uma aula na faculdade de narração/comentário esportivo: existe lá, na apostila do curso, um tópico que ensina como classificar as jogadas que se vê em campo. O aluno aprende que: bola por cobertura ou tento marcado com drible no zagueiro sempre é golaço; carrinho na linha lateral mostra que o jogador tem "raça"; quem dribla ou dá um passe bem dado (a tal "assistência", como os modernos gostam de falar) já está automaticamente "jogando muito", e assim por diante. Bons meninos que são, eles aplicam a técnica da decoreba, e saem a exercitar à risca o aprendido, sem ao menos dotar os ensinamentos básicos com algo personal ou criativo. A agenda é a mesma para todos, e quem sai desse registro não é exaltado, e sim marginalizado como "anti-profissional" e "maluco", entre outras coisas - mesmo que se atenha somente ao factual (algo imprescindível para um jornalista/comentarista, e um crime aos da nova geração).
E quem perde com isso? O ato de observar o futebol. Com tudo tão estanque, sem improviso, já dito na lata, e guiado por um padrão raso e de exigência cada vez mais pobre, banalizar as situações torna-se ato corriqueiro. Quem já não ouviu, nessa transmissões de domingo, alguma criatura dizer que gols comuns são "golaços"? Já vi isso ser dito até mesmo em cobrança de pênalti! A penalidade máxima, bem cobrada ou não, tornou-se "golaço". Isso é ato de desespero, rapaziada. Ou são pessoas que não possuem a capacidade da crítica, de fazer a separação do que é realmente acima da média daquilo que é apenas banal, ou que sequer possuem a de observar e entender o mínimo do futebol. Os compromissos que uma TV, rádio, revista ou que seja, assumem com os de fora do campo, não podem servir para retorcer o que acontece dentro dele, como sempre pregamos aqui e não cansamos de continuar a falar. Isso é desonestidade total, falta de ética. Ou faz parte do contrato estar sempre obrigatoriamente fascinado com tudo?
E a higienização do futebol segue a todo vapor.
(Atenção: o novo queridinho da mídia nativa é o lateral-esquerdo Marcelo, do Real Madrid - ele na foto. Constantemente exaltado, ele agora é unânime, para os bravos e intrépidos analistas, como "o melhor brasileiro da posição". Se realmente é, ou não, pouco me importa: o que conta é que, para o futebol higiênico e padronizado, uma seleção nacional inteira dotada de jogadores medianos como esse é imperativa. O marketing e a imagem precisam ser maiores do que a categoria dos atletas; precisam criá-los e abastecê-los com a fantasia que não são capazes de criar em campo. Quem avisa, amigo - ou amargo - é.)
sábado, 9 de abril de 2011
quarta-feira, 6 de abril de 2011
Libertadores pra que te quero
Sou de uma geração que cresceu ouvindo a mesma cantilena: foi somente a partir dos anos 90 que o Brasil passou a se interessar por Libertadores da América com maior seriedade. Sou cético a respeito dessa "verdade" - não é possível que o Santos desse pouco valor à suas duas vitórias continentais, uma inclusive em cima do Boca em Bombonera, e que o Flamengo não soubesse o tamanho de sua conquista ante o Cobreloa nos anos 80. Mas os títulos do São Paulo no início da década de 90 fez esse discurso se estabelecer, pois, premonitório dos atuais tempos das "marcas" e do marketing sufocante, fez elevar-se a torcida e a exposição do time - e, junto com a obsessão de todos em ser o maior da região, veio aquele papinho já tão explorado nas disputas entre seleções tupiniquins e platinas, desde os tempos idos da Copa América (época em que o Brasil era freguês de todo mundo), de que só ganha o torneio quem souber fazer a tal 'catimba'.
Ficou então estabelecido que, se quisesse ser considerado um país sempre vencedor da Libertadores, era necessário ao nativo aprender a catimbar igual a uruguaios e argentinos. Dar apertão, xingar, pisar, socar, dar cotoveladas - jogar sujo mesmo, sem sentimento de culpa. Nossos jogadores, que sempre reclamaram da "truculência" dos platinos, andinos e etc., viram que era hora de tratá-los com a mesma moeda. O segredo estava aí: usar as armas do adversário para destroná-lo. Às favas o "futebol-arte do brasileiro", sua "natural habilidade, criatividade e irreverência", portanto - vamos ser machos e raçudos, chega de ser vítima desse futebol-força ignorante e sem requinte do resto da América do Sul! Somos melhores que eles com a bola no chão, caramba! Isso é notório!
Então, caro amigo, vá tentar ver a atuação de brasileiros na Libertadores hoje. É patético demais assistir a jogadores exercitando a agressão pela agressão, sem a menor malícia para o jogo de milonga, praticando forçadamente e muito mal (pois desejam mais jogar pra galera a imagem de que estão se entregando em campo do que realmente fazer algo de produtivo) algo que não entendem, que foi imposto de fora pra dentro. E, se confundem catimba com violência gratuita, é porque entram no tapete verde movidos por essa xenofobia grotesca pregada pelos meios de comunicação, que estimulam rivalidades da forma mais simplista e rasteira possível (centrada em lugares-comuns do tipo "argentino é arrogante" e "uruguaio só sabe bater"), e não querem se impor pela malandragem: querem é revide. Assim, os jogadores brazucas, com a visão turvada por seu preconceito e total falta de conhecimento das escolas sul-americanas de jogo, jamais desestabilizam o adversário, objetivo principal do catimbeiro - desestabilizam somente a si mesmo e a própria equipe! Confundir estupidez e falta de recursos com "raça", um problema crônico do nosso futebol - e que, a cada dia que passa, torna-se mais risível.
Ficou então estabelecido que, se quisesse ser considerado um país sempre vencedor da Libertadores, era necessário ao nativo aprender a catimbar igual a uruguaios e argentinos. Dar apertão, xingar, pisar, socar, dar cotoveladas - jogar sujo mesmo, sem sentimento de culpa. Nossos jogadores, que sempre reclamaram da "truculência" dos platinos, andinos e etc., viram que era hora de tratá-los com a mesma moeda. O segredo estava aí: usar as armas do adversário para destroná-lo. Às favas o "futebol-arte do brasileiro", sua "natural habilidade, criatividade e irreverência", portanto - vamos ser machos e raçudos, chega de ser vítima desse futebol-força ignorante e sem requinte do resto da América do Sul! Somos melhores que eles com a bola no chão, caramba! Isso é notório!
Então, caro amigo, vá tentar ver a atuação de brasileiros na Libertadores hoje. É patético demais assistir a jogadores exercitando a agressão pela agressão, sem a menor malícia para o jogo de milonga, praticando forçadamente e muito mal (pois desejam mais jogar pra galera a imagem de que estão se entregando em campo do que realmente fazer algo de produtivo) algo que não entendem, que foi imposto de fora pra dentro. E, se confundem catimba com violência gratuita, é porque entram no tapete verde movidos por essa xenofobia grotesca pregada pelos meios de comunicação, que estimulam rivalidades da forma mais simplista e rasteira possível (centrada em lugares-comuns do tipo "argentino é arrogante" e "uruguaio só sabe bater"), e não querem se impor pela malandragem: querem é revide. Assim, os jogadores brazucas, com a visão turvada por seu preconceito e total falta de conhecimento das escolas sul-americanas de jogo, jamais desestabilizam o adversário, objetivo principal do catimbeiro - desestabilizam somente a si mesmo e a própria equipe! Confundir estupidez e falta de recursos com "raça", um problema crônico do nosso futebol - e que, a cada dia que passa, torna-se mais risível.
segunda-feira, 4 de abril de 2011
Cools AFC x CA Locos
Extremos ajudam meu raciocínio lógico. Um sociopata ao praticar futebol pode demonstrar um temperamento frio, leal e sóbrio. Um homem educado com toda polpa das altas sociedades, pai de família (verdadeiramente) exemplar, com a pelota nos pés pode ser um verdadeiro carniceiro, viril, que não deixa passar a bola ou, no mínimo, o adversário. E entre esses extremos, toda e qualquer variação emocional que se pode conceber é possível no futebol. Ele realmente desintegra os seres humanos. É uma besta gigantesca, indomável. E agora me deparo com a “polêmica” sobre o palavrão desferido por Rooney às câmeras de TV na celebração de um tento seu. A Rede Globo ostentou, orgulhosa, a manchete de um diário inglês que estampava o “desejo da FA de que Rooney tem de ser um exemplo”. FREE Wayne! A face dele, como se supõe, era de êxtase. Num dicionário lê-se: “e.mo.ção sf Perturbação súbita ou agitação passageira causadas pela surpresa, medo, alegria, etc.”. Salvo casos de comportamentos extremos, não se deve cobrar moral de alguém nesses momentos. Engraçado como a justiça esportiva (e a do futebol é um belo exemplo) funciona “às mil maravilhas” se comparada com a mundana – sob os aspectos morais, legais, temporais e por aí vai. Não se vê a Globo cobrando políticos e a sociedade como um todo, com esse afinco e com essa segurança de sucesso como fazem no futebol. E o que se passa na Globo é o reflexo da ordem lá de fora – e vice-versa. Sufocar é preciso. Transformar um “craque” em estrela das mídias requer moldá-lo como um “exemplo”. Assim pagam contas. Mas as contradições/hipocrisias estão sempre escancaradas aos nossos olhos. Por que não cobraram a mesma moral de Oscar, quando se desfez em palavrões (mais do que merecidos) na vitória do basquete brasileiro sobre os anfitriões norte-americanos (quase um derby Norte X Sul), nos Jogos Pan-americanos, em 1987? Oscar foi político do Maluf, e até dirigente de clube de futebol. Mas e daí? Como segurar um palavrão no orgasmo? A Inquisição não morreu! As meninas do basquete, da geração de Hortência e Cia., também se esbaldavam no desabafo de baixo calão e se banhavam nos prantos da celebração. Quero mais é comer de boca aberta no futebol! Os casos relacionados ao esporte bretão são tantos que nem se precisa comentar. Todo ser vivo deve ter, no mínimo, uma cena gravada na memória de alguma briga entre jogadores de futebol. Ser um homem educado não significa ser um jogador educado. Ali dentro, nada é mais igual do que era lá fora. Um grito de “porra!” pro árbitro não é igual a outro semelhante pro cobrador do ônibus. Clebér Machado como jogador de futebol atesta isso – procurem no youtube. Alguns, como ele, viram demônio; minutos depois do fim do jogo estão todos tomando cerveja juntos – exceto, claro, os extremos entre os extremos. E na verdade, tentar analisar o espírito do futebol e (muito mais) do homem é complicado pra se resolver num texto. O fato é que este controle sobre o mesmo em nome dessa ordem mercantil está em toda parte, mas poucos parecem de dar conta de sua existência. Gosto de assistir ao “Show-Bol” pelos mesmos motivos da Libertadores: há pouca frescura e há muita loucura. Além de poder rever caras que realmente jogaram futebol. Alguns não são mais os mesmos, mas de qualquer modo é uma água escassa que tanto faz falta. Mas como nada é perfeito, ela nos chega pelos encanamentos imundos da Rede Globo. No final do match entre São Paulo e Santos, absolutamente do nada, Válber parte pra cima de Preto Casagrande, com socos furiosos que não obtiveram defesa. Em poucos segundos, a turma do “deixa-disso” acalmou os ânimos de todos. Mas aqueles primeiros segundos foram diretos pro telespectador. Assim que pode mexer seus dedos bem educados, o diretor da transmissão tirou do ar a “luta”, e o narrador, pra completar, pediu desculpas ao telespectador pelas cenas – as que eles quiseram mostrar. Eu quis que ele se desculpasse pelas desculpas. Não recrimino o ato do interlocutor em si. O caso de Válber – ao contrário de Rooney – merecia punição caso esse torneio tivesse tal intenção. Mas o pano de fundo é muito sombrio. Não eram homens se esbofeteando no meio da Avenida Paulista; eram jogadores no auge de um tenso e disputado prélio. Apesar deste específico caso apresentar apenas um envolvido que, claramente, queria brigar, não sabemos o que aconteceu lá dentro, o que fora dito entre ambos durante o jogo – alguém lembra de Zidane? E acima disso tudo, está o tal de dever de reportar tudo, com imparcialidade. Me parece que o melhor trabalho é aquele que reporta o máximo possível – inclusive numa briga esportiva. Limpar a imagem, carimbar um pedido de desculpas polido e automático não me parecem tarefas de alguém comprometido com a reza moral que seu diploma carrega. Um contraponto disso seria repetir inúmeras vezes os tapas pra conseguir audiência – que muitos chamam de sensacionalismo jornalístico. Mas, novamente, ver isso acontecer dentro do universo do futebol é doentio. Selecionam, embalam e vendem – e há muitos que compram. O que vale não é mais reportar, e sim vender. Pra isso, a verdade tem de se transformar em “show”. E eu que achava que o futebol estava perto da Broadway quando Stoichkov fez aquele gol de falta contra a Alemanha, no NY Yankees Stadium, em 1994. E agora pedem desculpas por uns tapas, como se estivéssemos assistindo ao concurso de Miss Universo na casa da Dona Florinda. Esquecem que o futebol é outra coisa, é o outro lado, onde se deve desintegrar-se para alcançar um deleite que a vida segue negando. Porque a liberdade é arquiinimiga dos meios termos – principalmente os intencionais, bem elaborados e executados. Nosso inimigo é a Globo. E tudo isso que ela representa. Sinto muito depender tanto do futebol, ao mesmo tempo em que sei que nunca viverei sem ele. Nesses extremos, nos vemos por aqui nos próximos capítulos.
Assinar:
Postagens (Atom)