A guerra começou! É a guerra do futebol, travada a cada quatro anos. A finalidade dela é celebrar a liberdade e o prazer, através de um jogo fascinante. A cultura é a arma para driblar o inimigo. As nações levantam suas bandeiras, exageram seus sotaques, seus trejeitos. E os hinos ecoam, enquanto os atletas, perfilados, fazem sua última reza antes da bomba explodir. Mas aí, perigo! O futebol se deixa levar, mais uma vez, pela tendência das guerras mundanas. A imagem ultramoderna não deixa escapar a presença incoerente de um pecado ultrapassado do homem. Entre os guerreiros que deveriam defender as nações, estão alguns traidores que vão envergonhá-las. São chamados de “naturalizados”; eu os chamo de “bestializados”. Uma razão nada natural os leva a debandar sua tribo. Não é pelo coração que o fazem, e sim pela humilhação. Eles trocam o gozo da liberdade pela comodidade de abusar dela, em detrimento aos infelizes e afortunados compatriotas que ficam para trás. São homens que esqueceram o cheiro de sua terra, o ruído de suas ruas. Homens que vivem quatro anos, durante o treinamento para o combate, misturados entre os diversos inimigos e não reconhecem mais quem é quem no campo de batalha. E seus clubes se tornam seleções; e as seleções não são significam nada diferente do que os clubes. E neste caótico cotidiano, reaprendem a falar, a andar, a comprar em novos mercados e a cantar novos hinos. Não se lembram dos tijolos cravejados de balas, medo e insegurança nos muros e paredes das casas de seus conterrâneos. Em sua terra natal, os ternos vestem os criminosos, que almejam gabinetes administrativos. Que fazem mais balas atingirem nossos muros, famílias passarem mais fome e esta justificar a traição da pátria. Enterra-se, assim, o honroso espírito esportivo e competitivo. E as diferenças entre os guerreiros que sobrevivem na miséria e os que vivem adulados pelo luxo, se tornam cada vez mais descomunais. De repente, tudo escurece: o soldado ali não pertence; o exército perde sua força e a guerra seu sentido. A Copa da África é o filme de horror mais tenebroso que vi desde muito tempo, pois carece da essência desta guerra. É o pesadelo surreal do futebol globalizado. Porque a presença desses “patriotas de novas bandeiras” nem mesmo fortalece o desempenho de seus lados, e escancara a face deturpada de um mundo sem controle algum. Não há mais a marca de cada nação impressa nas caras e estratégias destes guerreiros virtuosos. Os exércitos se compõem de uma mistura de príncipes e líderes que não sujam mais seus pés – ou mãos. Guerreiros cujos hábitos, hálitos, inimigos e amigos são os mesmos - e nenhum deles representa mais ninguém. E cuja arma aponta para um só objetivo: a individualidade, sob o lema do “eu contra todos, e todos por mim”. A Torre de Babel desabou e, como formigas repentinamente desabrigadas, todos vão lutar desesperados por um abrigo qualquer. Esvai-se o sentido de lutar, pois não há vencedor numa guerra sem fim – e sem fins.
Para José Saramago
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