sexta-feira, 3 de setembro de 2010

Ainda não me ensinaram a fazer contas quebradas

Eduardo Galeano (foto) afirmou, uma vez, ser uma espécie de "mendigo do futebol", pois era como se passasse um pires pelos gramados mundiais, em busca de migalhas de fantasia no futebol, ou seja, um drible bem dado, uma jogada coletiva bem construída, uma defesa arrojada, gols espetaculares... Coisa cada vez mais rara no futebol, segundo o mestre uruguaio, já em plenos anos 90, época que pessoas como nós, que iniciamos nosso gosto pelo esporte um pouco antes dessa data, ainda enxergávamos tantas maravilhas. Pois, se aqui no Antimídia, ainda perdemos tempo com a indigência generalizada dos programas esportivos, é porque aguardamos (com certa ingenuidade, devemos admitir) algum abnegado da crônica soltar farpas de amargura com as quais nos identificamos, e que iriam frontalmente contra o corporativismo reinante entre emissoras e Campeonato Brasileiro, e entre tais articulistas e seus contratantes. Assim, somos algo como "mendigos da verdade" - uma tarefa hercúlea e que parece perdida, mas da qual não desistimos.

Hoje, fui conferir um programa da horrenda SporTV, esse canal que criou um mundinho paralelo de plasticidade total para seguir em sintonia com o futebol "globalizado" e seus fãs fast-food, unicamente porque queria ver os gols dos jogos de ontem. Só isso: não queria saber da opinião de ninguém, não queria ver matérias feitas por/para abobados, não queria ver sorrisinhos nem troca de gentilezas/piadas internas feitas pelos apresentadores, para simular (mal) a descontração tão cara ao jornalismo esportivo global. Queria apenas saber os resultados, ver os tentos, e acabou. Pois bem: a primeira chamada do programa matinal era um suposto "chapéu" que o santista Neymar havia aplicado no oponente catarinense do Avaí. Tal imagem foi repetida à exaustão, de vários ângulos, e já antecipava o discurso a segui-la: "alegria", "arte", "molecagem", bla bla bla. Detalhe que sequer foi mencionado: o que recebeu o lençol estava caído, deitado ao chão. Outra: o jogo estava paralisado, da mesma forma como havia acontecido há um tempo com o avançado baleeiro e o beque mosqueteiro Chicão. Pois sim: todos estavam prostrados ante um lance que sequer pode ser considerado parte integrante daquela partida, já que esta encontrava-se momentaneamente suspensa! E nosso amigo "craque" ganhou destaque ("incontestável", segundo os do canal) no cotejo por conta de algo gratuito como tal firula, que fez exatamente com o intuito de se exibir, de aparecer, de prorrogar forçosamente o rótulo de jogador "irreverente" que lhe colaram!

À parte a discussão que tomou conta dos programas da hora do almoço, dos quais a tônica é desde sempre o provincianismo estupidificante, a de que aquilo poderia ser um desrepeito ao adversário (e cuja réplica era sempre a de "querem acabar com a alegria do futebol" - cavalgaduras como esses caras só enxergam as coisas em termos rasos), temos aqui uma continuação do post anterior: o desespero que os profissionais do microfone (e, por extensão, os que os acompanham) nutrem por encontrar "ídolos", nessa era da pré-fabricação, os levam a considerar um lance fora do jogo como demonstração de "talento". E não são os tais "mendigos", como Galeano disse com a classe que lhe é peculiar, pois esses, que ainda passam o chapéu em busca dos restos da real fantasia no tapete verde, buscam justamente o contrário do que Neymar fez. O autor platino é de um tempo no qual se valorizava unicamente os feitos alcançados dentro de campo, por jogadores capazes porque verticais, objetivos. O 11 praiano, por sua vez, fez apenas e tão somente a costumeira publicidade de si mesmo, maquiada de "arte", de forma oportunista, covarde até (o adversário estava caído, lembremos), e que nada acrescenta ao futebol como jogo, como esporte. Se a firula desnecessária dentro de uma partida já é algo discutível (para nós, repugnante), Neymar notabiliza-se por levar a inutilidade ao ponto de ser reconhecida como acontecimento de maior interesse até do que ele e seu time haviam feito em campo. Anotou um gol, até deve ter jogado bem, o Santos venceu, mas os olhos se voltaram para o momento no qual não existia futebol, no qual o duelo estava interrompido, para o qual seu gracejo deveria significar o mesmo que uma reposição de bola feita por gandulas. Sintomático que se subtraia da manchete e das discussões a peleja, as equipes, o campeonato: é o canal, o programa esportivo, o jornalismo em geral, mandando o futebol definitivamente às favas, para destacar uma bobagem extra-partida! A real motivação para a cobertura torna-se algo que não é mais o desporto bretão; mas que, paradoxalmente, nos é vendida como a alma do "real futebol brasileiro"! Isso é assustador demais para passar batido, caras. Por essas e outras que, por mais que exista a vontade de jogar tudo ao inferno, ainda encontramos um tanto de força e de razão para postar aqui.

(Um adendo: nas últimas partidas, São Paulo e Corinthians - antes, lógico, da palhaçada do tal 'retorno' de Ronaldo - entraram em campo sem centroavante de ofício. Um dos nossos últimos tópicos falava exatamente da escassez que tal posição enfrenta no mundo hoje em dia. Será por conta de covardia tática, ou porque esperam que o próximo 'fenômeno' surja a partir da eliminação, para que este seja em definitivo o 'único da espécie'? Alexandre Pato está aí, na fila dos que aguardam tal oportunidade.)

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