segunda-feira, 10 de maio de 2010

O que restou dos Mundiais


Agora começa o terror: somos bombardeados com zilhões de comerciais televisivos que fazem alusão à Copa do Mundo vindoura. Institui-se a ditadura de sempre, a da obrigação em torcer pela tal Seleção Brasileira, ou corre-se o risco de ser um pária, um aborto, em comparação a essa turma alegre, saltitante e fascista até a medula, que se emociona, quase às lágrimas, quando um gol canarinho é marcado. Engraçado que não se vê qualquer resíduo de sinceridade ou de real energia nessas comemorações da TV: mesmo que encenadas, preparadas com o propósito único de anular o nosso senso analítico para venderem produtos, elas deveriam passar algum sentido de realidade para o espectador. Mas agora nem os comerciais a isso se dispõem. Não sei se por falta de interesse ou por uma (improvável) autocrítica, estão mais artificiais e vazios do que nunca. Nem a publicidade, essa máquina de criar ilusões efêmeras, realmente acredita que ainda possa existir essa "corrente pra frente" criada nos primeiros Mundiais vencidos pelo Brasil. Por isso, está cada vez mais agressiva, como as que incentivam a xenofobia contra os argentinos - mas isso já é outra história...

O conceito de seleção começou a implodir a partir do momento em que os clubes tornaram-se as próprias. Antes, os selecionados locais eram a possibilidade de se ver os craques de determinado país, que jogavam por clubes diferentes, reunidos com uma mesma camisa. Hoje, esse tipo de novidade não existe mais, pois as agremiações européias já se prestam a esse papel, e vão adiante: os abastados orçamentos os dão condições para reunir a nata de todos os continentes, formando verdadeiros 'all-star teams' para a disputa de torneios regionais e continentais, coisa que somente os times da FIFA, em ocasiões especiais, anteriormente faziam. São maiores do que as próprias seleções - enquanto estas tornaram-se apenas o cabide das grandes corporações que patrocinam os atletas, pois é através delas que irão conseguir contratos mais vantajosos para os que mantém sob sua tutela, e dali obter visibilidade diária para eles e para si (afinal, times jogam duas vezes por semana; seleções, quando muito, de dois em dois meses). Não se ouve falar quem é a fornecedora de material esportivo do Manchester United ou do Milan, mas se sabe que a Inglaterra é patrocinada pela Adidas e a Itália pela Nike. E isso não é por acaso, acredite.

Temos, além da parte financeira, outro complicador: os jogadores não possuem mais identificação alguma com as camisas de seleção. Isso pode parecer batido, mas é a pura verdade. Não só os brasileiros sofrem com isso, mas os próprios europeus também. Como exemplo, os destaques da Espanha que jogam na Inglaterra: eles vivem a realidade de outro país, convivem com outro povo, falam diariamente outra língua, acompanham a cobertura constante da seleção local. Profissionalmente, a ligação com a Espanha não existe para além da certidão de nascimento. Ele não vive mais aquela febre que deveria viver para vestir a camisa do selecionado pátrio; seu cotidiano é o de um inglês. Quando ainda joga no próprio país, é cercado, em seu clube, por estrangeiros, por pessoas que vivem essa mesma realidade que seu compatriota vive fora de lá. Não é à toa que cada esquadrão europeu agora conte com um naturalizado - boa parte deles, com mais de um. Futebolisticamente, eles possuem mais do país adotivo do que do de origem. Por isso, criou-se uma distância intransponível entre os "ídolos" e suas nações, já que eles não mais as pertencem. Uma bagunça total.

E ainda temos o "eu futebol clube" também, como não? A ordem do dia é a dos clubes servirem aos jogadores, e não mais o contrário. Temos o Cristiano Ronaldo, simplesmente; não mais o "Cristiano Ronaldo do Real Madrid" ou "Cristiano Ronaldo da seleção portuguesa". Eles tornaram-se entidades descoladas de times ou selecionados, são estrelas independentes de qualquer conexão com camisas. Seleções sempre se pautaram pelo coletivo; hoje, o individual é o que conta. É a pá de terra que precisavam para enterrar essa instituição que personificava o esporte, e que hoje pena por conta da despersonalização instituída nos gramados mundo afora.

Na Copa da África (para citar um evento recente) ficou patente que as competições entre seleções dificilmente conseguem manter o interesse. Víamos, ali, jogadores, quando não completamente desinteressados, pouco à vontade em trabalhar coletivamente, vestidos sempre como as estrelas que encarnam em seus clubes na Europa (mas cujo talento é supervalorizado em conseqüência disso), sem identificação com seus países natais, doidos para voltarem logo ao "Primeiro Mundo". O abandono de Togo foi sintomático: enquanto os atletas clamavam por segurança/organização típicas dos lugares que negociam na Bolsa ações dos clubes de futebol, Adebayor (foto) dava entrevistas vestido com camisa do Arsenal, para falar do Campeonato Inglês! Com essa atitude, além de demonstrar total falta de respeito e senso profissional, não só com os seus, mas com o próprio contratante (afinal, seu clube na época já era o Manchester City, não mais os Gunners), ele não tratou de diminuir o abismo que o separa de sua nação-mãe; e sim de aumentá-lo, demarcando as prioridades e apresentando seus reais interesses dentro do futebol. É isso que aguarda o certame da África do Sul: egos, marcas, patrocínios, chuteiras luminosas, telões de alta definição, fotos cuidadosamente posadas para parecerem espontâneas e marketing pessoal a rodo. R. I. P., Copa do Mundo.

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