terça-feira, 10 de maio de 2011

Desabafo de um saudoso



Estou, novamente, vivendo dias de observação, agonia e loucura desenfreada. Pouco escrevo quando me acomodo nesse estágio - mas muito aprendo também, ao constatar e viver o declínio intensamente. E o horror que é o futebol atual, servindo apenas de cortina para manipulação midiática, lucros para os de cima e sofrimento para os de baixo e tortura ao verdadeiro espírito esportivo do homem, fez ressurgir em mim o comentário, o desabafo - sim, devo corrigir minha interjeição de janeiro deste ano, quando presumi não ter muito mais o que dizer sobre o quadro atual. Na loucura, você vai e volta e sempre encontra o mesmo problema e busca soluções com a mesma intensidade com que respira. Portantro, há muito, sim, o que dizer sobre o tapazo na cara (estilo Capitão Nascimento) que Santander e Globo levaram na Libertadores - nós até tentamos avisar aqui, como bonsa amigos do futebol que somos -; ou como as chuteiras coloridas representam um desrespeito à própria regra do jogo uniformizado (e aí vemos como é ilegal, além de medonho, esse processo de transmutação que o futebol vêem sofrendo); sobre o rapaz que atravessa todo o campo para bater um lateral na Inglaterra (novamente, desrespeitando outra regra do jogo, já que o mesmo tem de esperar alguém passar uma toalha na bola antes do arremesso, que devora pelo menos 1 minuto do tempo de jogo, para que todos possam aplaudir esse luxo desnecessário); mais detalhes da lentidão do jogo, estampada nos passes curtos e escassez absoluta de lançamentos e toques insesperados, que transformaram o futebol no que ele é (raros são os passes que saem do jogador A para o C - quase todos têm de passar do A para o B e deste para o C, como as crianças fazem no início de suas práticas); a decisão do Campeonato Paulista mais insupórtável, fraca e silenciosa da história; Ronaldo Gaúcho e o carioca e a nova fase do amor próprio na humanidade; como a TV, com seus incessantes e nada esclarecedores replays, reparte o jogo em pequenos momentos de "emoção" que, até pouco tempo atrás, só funcionariam no cinema e, com isso, faz dos jogos medonhos algo rendável... Sim, há muito o que dizer, e virá mais, conforme os pilhadores da bola seguem construindo esse castelo de cartas (ou bolas). Sempre será hora de agir. Mas, no momento, transcrevo esse desabafo de outubro de 2007, para compartilhar com o mundo a alma destroçada pela morte do jogo.




" Que saudades do futebol, barbaridade! Daquela sensação indescritível dos domingos colados em um radinho de pilha qualquer, dos jogos duros e disputados com o coração à frente de qualquer importância econômica. Dos estádios que reluziam uma cor acinzentada, porque a arquibancada ainda era um espaço aberto ao homem que se fodia toda a semana e precisa daquilo para sobreviver no mundo moderno. O futebol vai sumindo, e eu sinto como se estivesse perdendo um ente muito próximo e querido. Perturbam-me todos os dias as imagens que rechearam minha infância e parte da adolescência. Até que tudo começou a desmoronar, e eu, desde o início, percebia o que estava acontecendo. Odiava o que estava invadindo aquele universo mágico, que pra mim era quase perfeito, onde as derrotas e as vitórias faziam parte do todo, e você sabia lidar com isso. O futebol fazia homens de verdade, e acentuava a busca por si mesmo. Hoje ele é o maior, mais lucrativo e mais eficiente campo de formação de macacos de circo, adestrados e asseados, e divulgação de um meio de vida consumista e insuportável para os que sentem a bomba funcionando. O negócio é que não se trata de choro infantil, o treco é patológico. Está destruindo tudo aquilo em que acreditamos, e nos deixando cada vez mais putos, e de veias abertas perante o descaso humano ao confrontar tamanha tragédia.


As bandas de black metal norueguesas não sabem como é difícil a vida até passarem um mês aqui nessas bandas. E o futebol moderno sempre teve as portas do terceiro mundo escancaradas na imensa costa leste do continente novo. A ignorância tomou conta de vez, e sinto falta da certeza que um jogador saberia conceber uma entrevista e formular duas frases com sentido. Sinto falta da certeza de que você sempre veria uma partida decente, onde as pelotas não pareceriam queimar os pés dos atletas, como acontece hoje. Mesmo aquelas partidas ruins (e havia uma porção delas) soavam engraçadas, porque havia um punhado de senhores tentando crescer como indivíduos e praticando aquilo que pregavam – algo tão raro nesta era desgraçada. Saudades do futebol ao vivo pela televisão, às quintas-feiras e sábados, onde não necessariamente os times grandes ocupavam a tela, e dos árbitros que defendiam a regra do jogo com ódio e fervor, porque amavam o esporte tanto quanto outros atores envolvidos no espetáculo - ou, no mínimo, sentiam nele a responsabilidade de ser imparcial e correto. Hoje, eles não passam de ignorância manipulada, sábios apenas de que dificilmente terão lugar no “mundo livre e competitivo” e conseguem, através do desejo das federações prostituídas e empresários manipuladores, um palco onde desfilam, duas horas por semana, uma suprema e inatingível autoridade – esta filha da puta autoridade que guia os comuns processos judiciais esportivos, que refletem muitas vezes a falta de colhões dos jogadores modernos. Todos querem privilégios, exigências. Nilmar parece um travesti, e a mídia impõe a opinião de que ele está certo, vivendo como em uma “prisão” e querendo se libertar – mártir da revolução da chuteira cor-de-rosa e macia! Faz-me-rir! Esse é o lado que assusta pela surpresa, e sempre achamos que já vimos de tudo quando vivenciamos uma catástrofe. Por outro lado, tenho ótimas lembranças, como a dos fortes times do interior e de seus jogadores raçudos. Pena que ficaram para trás, apenas. Havia um respeito às cidades pequenas, uma noção instantânea de que naquele retângulo descampado e bem aparado (às vezes esburacado, claro) jazia eternamente uma chance de devolver as injustiças da centralização social, por uma hora e meia que fosse. Ou simplesmente derrotar os badalados times da capital, como o fez a Internacional de Kita, Lê, Tato e Gilberto Costa. Saudades infernais dos campeonatos de juniores, que sempre antecediam as partidas principais; em especial o futebol se ressente dos garotos que não sonhavam com o velho continente. Somente invadia seus corações um Morumbi, ou um Pacaembu lotado de gente urrando seu nome após um gol, ou um carrinho bem desferido (e há melhor satisfação do que essa para um jogador de futebol?). Sinto falta das palavras poderosas que sumiram do futebol: a honra, o dever... Por isso eu adoro os “300 de Esparta”, desde que foi lançada a coletânea em quadrinhos, em 1999. A troca do seu prazer, pela anestesia das dores de outrem, coincide com aquilo que o futebol me ensinou desde 1985, e o que antes disso também edificou minha crítica, através das leituras e pesquisas. Não há nada mais digno do que uma pessoa atingir esse estágio, e no futebol eram freqüentes os casos de sacrifício. Alguns argumentam que os tempos mudam. Mas o que parece ter acontecido no futebol, ultrapassa os limites do bom senso e abre um abismo gigantesco entre a realidade social e a realidade financeira de um jogador. O respeito não pode mudar com os tempos, e o suor continua molhado até hoje. Da mesma maneira, não pode secar-se o choro no futebol. Hoje, é mais fácil enfrentar uma derrota humilhante com sorrisos cheios de dentes, porque, afinal de contas “amigo”, futebol é apenas (!) pra se divertir, dizem eles. As pessoas são contaminadas pelo veneno do futebol mercantil, e esquecem de que a violência, a defesa, a luta não são ações negativas. Elas apenas refletem o sentimento de amor a uma jaqueta; o respeito a uma história de esforço, uma saga de uma família, muitas vezes. E “quando todas as alternativas se esgotam, a violência é justificada”. Resta alguma pacífica alternativa para romper com a tirania do futebol no segundo milênio?


O futebol não é um teatro, o futebol é nosso – parafraseando meu amigo Malavita. Pouquíssimos jogadores têm isso em mente. Mas deveriam, porque, em teoria ao menos, ninguém leva uma pessoa forçosamente a ser um jogador. É uma escolha pessoal e muitas vezes natural, e ela tem que vir acompanhada da consciência de que este esporte é violento, viril e está tão longe quanto à compaixão de um traído pelo seu traidor, de ser apenas um passatempo ou uma atividade física recomendada por um médico. E exatamente por ser algo tão áspero é que, através dos séculos, apareceram tantos nomes geniais – modestamente acredito piamente que supere até a música, literatura, pintura, o teatro, cinema ou qualquer outra atividade cultural, mesmo que a maioria delas nos permeie desde o início dos tempos, enquanto que o futebol exista, como conhecemos, há pouco mais do que cento e quarenta anos. O caminho para o super-homem, algo que é “muito mais do que a vida e a morte”, segundo Sir Bill Shankly. Dessa maneira pessoas comuns calçam um par de chuteiras, e podem realizar algo que nos trará satisfação por toda a vida. Citei o espetacular batedores de faltas e lançador Gilberto Costa – um dos vários “Meninos da Vila”, de 78 – e logo me lembrei do que mais sinto falta no futebol atual (e sei, ao ler o livro “Febre de Bola”, de Nick Hornby, que não estou sozinho neste saudosismo): os meio campistas, legítimos camisas dez. Aqueles que regiam o jogo como uma criança controla sua pipa nos céus. Lembro de um Corinthians e Santos, em 1988, pelas semifinais do Paulista, e sempre brilha na minha alma um senhor chamado Mendonça – que em 1981 marcou um golaço pelo Botafogo carioca, nas semifinais do Brasileiro, no mesmo Morumbi que sete anos depois faria ecoar um “ohhh”, a cada toque de primeira, ou lançamento primoroso do, então, já veterano atleta. Eu não tinha idade pra entender profundamente o jogo em si, mas sabia que aquela pessoa era intocável, quase fictícia. Ele faz parte da lista de jogadores que, mesmo que demonstrassem alguma deficiência aqui ou ali, não precisavam de mais nada para estar no mais alto patamar dos craques, juntamente com Pita, ‘Pepe’ Signori, Paul Gascoine, Glenn Hoddle, Dennis Bergkamp, Brian Laudrup, Luc Nilis, Helmut Haller, Luiz Suarez, Ralf Edstrom, Enzo Francescoli, Roberto Mancini, Fernando Redondo, Giovanni... Todos parcialmente ocultos devido à falta ou excesso de personalidade, uma contusão mais séria, ou simplesmente má sorte. Mas nenhum desses devia nada a ninguém em campo – deuses da bola! Os craques, os toques geniais, uma notável virada de campo com um chute de sessenta metros, hoje comemorados como um gol quando aparecem de tão escassos – sua ausência lastima e machuca de verdade, ó futebol. Gosto de refrescar minha memória até com os momentos que, para um garoto de seis anos, pareciam tensos e perigosos: os corre-corres nas arquibancadas (freqüentes, pra não dizer obrigatórios), acompanhados sempre do corpo do meu velho me envolvendo em proteção. Lembro de que eu sentia certa graça naquilo, porque dificilmente a violência chegava até onde estávamos, e eu sabia que nada de mais grave aconteceria, ao mesmo tempo em que centenas de torcedores gritavam para que fugíssemos. Ou seja, eu não ainda era corrompido nem mesmo pelo tesão das brigas e emboscadas aos visitantes (ou escapar delas quando saímos de nosso campo), tampouco por nenhuma filosofia de vida babaca, que hoje supre em mim a falta do que mais amo. Ainda assim não me incomodava aquele tremor todo. Eu sabia que fazia parte do todo, e me excitava com aquilo. Eu havia escolhido ser um torcedor de futebol, não de automobilismo. Logo, sabia que não podia reclamar dos reveses da situação. Os rojões que pareciam perder a gravidade e completar a atmosfera, e faziam de um jogo qualquer uma barulhenta guerra de nervos. As torcidas, as bandeiras, as rampas dos estádios cortadas pelos toscos sacos de papel picados, que eram lavados por dois ou três brutamontes devido ao peso. A liberdade de falar o que quiser, quando quiser e pra quem quiser. Não era anarquia, nem de longe. Era festa, celebração do ódio acumulado. Saudades insuportáveis do gosto do guaraná Brahma, que sempre adocicava minha boca nos intervalos, quando meu velho voltava, a duras penas, entre os torcedores desengonçados e mal acomodados, com três copos de papel cheios do líquido que também mataria a sede do meu irmão. Não pelo gosto em si do refrigerante. Mas aquilo fazia parte do dia de futebol da minha época, e hoje os produtos são vendidos em embalagens higiênicas e guardanapos de pano, tudo frescura de empresas monopolizadoras. Parecem aqueles lanches vendidos nos jogos de beisebol nos Estados Unidos, que os torcedores vão passando, de mão em mão, até a comida chegar ao comprador. Aliás, tudo está cada vez mais parecendo o “american way of life”. As pessoas que antes freqüentavam os campos eram diferentes. As conversas eram menos enjoativas, simples, seus ídolos não levavam medalhas do amor próprio, dessas que talham os peitos com a letra inicial de seus nomes idiotas. Até o grito de gol era, indiscutivelmente, mais emocionante, carnal, raivoso e sangrento. É fácil entender; eram gritos direcionados a homens naturais, que transmitiam essa energia pro povo e dele recebiam todo o amor possível de se cultivar de volta ao gramado. Das Copas do Mundo que vi quando pequeno, nem quero lembrar muito. Emoção extrema assim, misturada com o efeito Diadema em excesso, não vai me fazer muito bem.


A verdade é que minha geração viu o derradeiro suspiro do espírito antigo, e, por isso, eu instintivamente odeio praticamente tudo no futebol moderno. Vamos lá: as bolas leves e coloridas; as transmissões cinematográficas; a descaracterização do futebol na América do Sul, e o desaparecimento dos esquadrões que sobreviviam e se agigantavam de suas raízes (o futebol uruguaio que o diga); os jogadores que não ficam mais de pé no gramado, e se barbeiam duas vezes ao dia; os centros de compras, chamados de novas arenas; a invasão de camisetas européias nas ruas sul-americanas, e a obsessiva audiência aos torneios de lá, exatamente quando eles perderam qualidade; os programas de futebol na televisão, que não falam mais de futebol; o fim das peneiras nos clubes; a Lei Pelé, que fez os jogadores pensarem que são trabalhadores, “como qualquer outro”, e “têm direitos”, mesmo que na folha salarial deles possa constar uma quantia de duzentos mil reais mensais, ou mais – o jogador é um empregado de uma religião, onde a infidelidade não pode existir e o banco de reservas é a penitência àqueles que não rezarem com vontade! Sem essa mentalidade o futebol vai, paulatinamente, perdendo toda a força e emoção que tinha na época em que os "europeus jogavam na Europa". Já havia alguns ‘convidados’ ocasionais, e que tinham mesmo que merecer chegar lá pelo futebol provado em sua terra natal. Mais cada país tinha a identidade estampada em seus times, e isso, em especial nos campeonatos continentais, conferia as partidas uma sensação absoluta de comprometimento para com aqueles que mais se importam – os torcedores. Meus domingos eram divididos entre molho de tomate espirrado na cara toda, enquanto meus olhos esbugalhados assistiam um ‘tampinha’ driblar até a sombra dos marcadores carniceiros, e certo Marco ‘fuzilar’ arqueiros, ao som endiabrado de Sílvio Luís. E depois sou culpado de ser amargo! Até algumas temporadas atrás, eu ainda me arriscava a ver um jogo, ou seguir as tabelas das grandes Ligas. Mas não consigo mais fazê-lo. Simplesmente a essência lá não existe mais. Dia desses, nem mesmo a um jogo em Anfield eu tive estômago suficiente pra sobreviver mais do que trinta segundos, antes de voltar a trocar de canal. É quase o limite do fim. Confesso que ainda não abandonei por completo o futebol. Vez ou outra aparece um jogo como a final do Europeu, em 2005. E meu coração agoniza e eu sinto uma esperança burra. Embora naquele jogaço eu gritasse até minha garanta sangrar, sei que o valor de um gol de carrinho do Biro-Biro é muito maior do que o gol equalizador de Xabi Alonso. Não pelo que o gol representou, ou trouxe pro seus respectivos times. Mas porque a essência que mantém vivo o jogo, naufraga junto com o nível dos seus atores. Inevitavelmente, continuam a nascer jogadores como Lugano, Juninho Pernambucano, Gerrard, Totti, Riquelme e Valdívia, e meus olhos colam na televisão. O problema é que (vagarosamente pra quem viveu dia após dia essa mudança, porém instantânea na linha da história) esses craques vão se tornando exceções na regra da mediocridade, exatamente o inverso do que eu via há duas décadas. E essa proporcionalidade vale para tudo no cenário futebolístico. Mas tudo isso é lixo, não importa. É superficial demais perante as barreiras que nos cercam de verdade, e contra as quais temos que lutar todos os jogos, em especial aqui na capital mundial do combate ao torcedor do futebol, São Paulo. A principal dor que sinto hoje é não poder torcer mais como podia antes, essa é a dor na pele. “Um estádio sem faixas e bandeiras, é como um prato vazio, ou um céu sem estrelas”, dizia um trapo qualquer. A ditadura, a censura, os preços de NBA, com regulamentos e tabelas mais incompetentes do que no Torneo Apertura de Honduras, a imposição da soberania irresponsável invadindo a paixão de cada criança. Repressão é o grande soldado, defensor das finanças. Sinto falta do futebol sem medo de tudo e de todos. Tenho uma terrível tendência de enxergar sempre o lado negativo das coisas, e no futebol isso faz com que cada pequena mudança nas regras, nas transmissões e, claro, nos uniformes simbolize uma momentânea visão do futuro, e ele sempre parece sombrio, aterrador e vazio. As regras podem e devem amadurecer com o tempo, não somente no esporte. Mas as mudanças não podem deixar para trás um funeral de emoções, como um estádio demolido sem outro motivo, senão acumular capitais. Isso realmente incomoda aqueles que desfrutaram de algo que lhes pertencia mais até do que sua própria vida. Cuidado, senhores engravatados e cheios de boa vontade... Logo, logo, tomaremos tudo de volta, e a saudade será de vocês em relação à mordomia luxuosa da qual, pateticamente, gozam. Prefiro morrer primeiro, a acreditar que tamanha ignorância possa vencer nossa criatividade. Hasta! "

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