sexta-feira, 29 de janeiro de 2010

Entre tapas e beijos

Se eu tivesse que separar, pela ordem cronológica, os sentimentos que guiaram os meus últimos quatorze anos deste vício – nos quais prevaleceu o grito de “ódio eterno ao futebol moderno” -, uma boa escolha seria esta: espanto, tristeza, ódio, desespero, dormência, incredulidade (e foi só aí que começaria a Ju-Metal, em 2001), incontáveis doses de espanto e ódio até que, por fim, apareceu o medo. O que estou começando a sentir, de um tempo recente pra cá, é uma mistura de um pouco de cada uma. O que excita ao “jogador” moderno está começando a me dar medo, assim como a leviandade impregnada na alma de um jogo controlado por botões, e não colhões. A certeza de quê não vou mais poder desfrutar do futebol, como sempre gostei, com liberdade. Percebam que não é uma escolha..., e sim, a única saída. Futebol ou nada!

Mas, ao contrário do que muitos podem pensar, esta é uma ação guiada muito pelo amor. Porque o futebol é como um filho de cada verdadeiro torcedor: às vezes, nem percebemos, e estamos a cuidar dele, sem medir esforços materiais e espirituais - como fazem os pais. “Lutamos” por ele, ainda que as autoridades envolvidas usem esta expressão para, convenientemente, qualificar-nos de únicos “inimigos” – salvo os sentados, comportados, consumistas e vestidos com a camisa oficial mais recente da última semana do time (“E lá se vão mais cento e tantos reais pros cofres de nossos malfeitores!”). O outro lado da moeda, que escreve a estória do futebol de acordo com seus índices na Bolsa de Valores, finge que é cega, para disfarçar sua própria culpa. E para isso, precisa manipular os fatos, esconder a tragédia social por detrás de seu preconceituoso meio de vida. O bico não vai se abrir como obriga o juramento dos diplomados “especialistas” da TV. Que voz tem o verdadeiro torcedor, que não precisa de produtos do time para alimentar o amor abundante dentro do peito? Jogos de futebol são eventos públicos, onde as pessoas podem e devem se expressar e gozar da tal de democracia! O que a televisão não costuma qualificar, questionar, nem denunciar são ações tomadas pelo ódio, em nome da “paz nos estádios”, apesar do elevado potencial sensacionalista das mesmas. Nesta semana, decidiu-se por banir imagens de Che Guevara, tradicionalmente usadas pela torcida do clube Monte Azul, ferindo, assim, o artigo 5° da Constituição brasileira (chamada até de “Lei Maior”, mas que se encolhe perante a corrupção e parcialidade dos homens). Não cabe aqui discutir os pontos contra e a favor do revolucionário argentino, e sim a escancarada censura, imposta aos torcedores com requintes de AI-5! Pouco se viu na mídia sobre esta ilegal ação, e mesmo que ela fosse noticiada, sabemos que a forma como abordam temas desta natureza é sempre a mesma: com a opinião pública moldada como argila, a mídia faz sempre pesar a balança da justiça para o lado que paga suas contas. Nunca de forma honesta, pois ela está, junto com seus patrocinadores, amarrada no conglomerado de investidores abençoados pela boa mamma, a dona FIFA. Surreal a co-existência desta exclusão com a essência democrática do futebol. E se as mídias não conseguem remediar o caos, da prevenção dele certamente não ajudarão.

Não há crítica em relação ao comportamento dos atletas, desenvolvendo uma corrente de pequenas células deste grande organismo podre, que chamamos de futebol modernista. O ego inflado, daqueles que tem seus rostos estampados nos jornais ou nas telas de TV, faz sumir por completo a teoria dos mosqueteiros (“Um por todos, e todos por um!”) que se aplicava perfeitamente na prática futebolista. Daqui a pouco veremos algum “jogador” transando com a câmera, como fez Kurt Cobain, em 1993. O medo me atingiu durante o match entre Juventude e o time do Galinho de Quintino (o maior, depois de Pelé e antes de Giovanni), no momento em que as equipes se preparavam para os penais que decidiriam o classificado a próxima fase da Copa SP. Quando vi um time com as místicas iniciais que carregam os gaúchos da serra, jogando no Nicolau da Lapa, não tive dúvidas de quem sairia vencedor. E assim, claro, aconteceu, mas não sem um preço cruel a pagar por este pobre apaixonado que vos escreve. O primeiro constrangimento foi em relação aos fanáticos rituais religiosos que os atletas promovem, regados a choros e gritos aos céus, enquanto a bola continua presa aos gramados e a torcida às arquibancadas - tem horas em que eu ando confundindo os prélios com cultos de louvor a deus. E assim o veneno perambulou, a olhos nus, como uma seqüência de golpes nauseantes, injetado pela imprensa, quando o câmera-man forçou a passagem, a entrar naquele círculo de fé que os players desenham. Primeiro erro, pois isso existe para uma melhor concentração e união do plantel, e a mídia não tem nada que se meter no curso das emoções do jogo, de maneira alguma. O que vais a fazer um “profissional” do microfone ali no meio, senão um strip-tease, para relaxar a todos? Faça-me o favor! Só que era apenas a metade dos problemas numa situação como aquela. Assim que a telinha invadiu o terreno, incontáveis olhares e trejeitos simpáticos, e ávidos por ação ($), vieram dos jogadores, como se ela fosse uma puta se aproximando na escuridão de um bordel. O locutor principal do elenco falava com seriedade, com pinta de capitão, até aí tudo bem. Mas ao seu lado, outro garoto simplesmente não conseguia mais tirar seus olhos daquele objeto de consumo dele mesmo, e no final da palestra soltou seu “grito de guerra” para as lentes, e não para seus companheiros. Ali ficou claro que não havia energia sendo desprendida de um player para os outros, e sim transportada, numa viagem de ida e volta, para si mesmo. Me senti como no cenário do filme “Blade Runner”, habitado por astros do mundo pop: muita tecnologia, miséria, pose e tédio; pouca força popular, grandeza espiritual, espontaneidade e tesão – como no dia anterior a uma prova de matemática., com os mesmos calafrios, ódio e desejo de que não fosse real. Infelizmente, estas “pequenas” células continuam a aparecer, pois fazem parte (essencial) do todo que compõe a nova ordem do futebol, que é o lucro – e, acreditem, nesta negociação o valor maior adquirido foi o controle da paixão, pilhada daqueles que nunca vão vender o que é seu, os torcedores. E, se o que está li é uma câmera, porque esperar que os programas da hora do almoço falem mal desta nova “faceta” de suas transmissões cinematográficas? Eles ainda vão aumentar o valor do grito egocêntrico dos players, inaltecendo a “fé e disposição dos meninos”, vendendo para os consumidores otários uma arte opaca e nada douradora, como se transformou o futebol – vide a enxurrada de “super craques” que está voltando para a ralé terceiro-mundista, porque não agüentam a pressão na Europa, assim como a numerosa turma de “velhinhos” que continuam a achar espaço para jogar, mesmo na faixa de seus quarenta anos.

Há tempos que estamos a fotografar o caos do futebol, mas acho que chegou a hora de dar o exemplo contrário a esta ordem improdutiva, em que a mídia não pode mais criticar um meio controlado por ela mesma. Pouco significado terá qualquer desabafo se não vier acompanhado do exemplo bom, que não dá medo e, sim, esperança. Fatos que refletem a liberdade que se perdeu e os questionamentos que mantinham a qualidade da arte e do jogo. Quando eu preciso daquela dose de nostalgia para sobreviver, recorro aos tapes que citei no texto anterior, e também a minha coleção de revistas - na esmagadora maioria edições da saudosa Placar. E que boa surpresa tive quando, ao ler uma edição aleatória que pesquei na pilha do velho armário, percebi que o que estava impresso ali era o conteúdo que Bury e eu tentamos manter aqui nesse sítio eletrônico – com a mesma carga crítica em relação ao comportamento dos atores envolvidos no espetáculo, denúncias ao que feria a moral de todos, e muito paixão derramada nas matérias sobre os jogos da semana que passara. Claro, porque ninguém ali tinha o rabo preso como hoje; todos noticiavam com amor pelo jogo os fatos que, naturalmente, aconteciam, e ali estava a influência que fez minha geração crescer dependente química pela pelota, com senso aguçado do que pode ou não ser aceito – bem diferente do que deve ou não ser aceito, que a nova ordem aplica. E a escolha não foi coincidência, pois qualquer outra edição daqueles idos transbordaria a mesma energia positiva e agradável ao leitor. Aquela era a regra que refletia no campo, nas arquibancadas, e até mesmo na televisão. Pretendo, pois, transcrever algumas passagens desta edição, durante as próximas publicações minhas aqui. Portanto, é hora de comparar, desfrutar e lutar – sem medo, sem mais o que perder. Provavelmente o fiz influenciado pelo som da banda Slayer – que estava a ouvir enquanto escrevia -, mas me esqueci de que o contingente ainda favorece os comerciantes do legado de Charles Miller. E sei que, para adentrar o nosso lado, as pessoas terão que passar por muitas decepções, até desejarem lutar pelo que é seu, com prazer e honra – nunca coagidas ou constrangidas. Veremos até quando suportarão aqueles que ainda não acordaram para a realidade – e que o façam bem longe dos sofás, e bem perto do cimento! Aguanten!

PS: Em 1996 (sim, foi naquele ano, eu juro!) eu vi pela primeira vez um clássico maior de meu estado natal (Corinthians versus Palmeiras) ser disputado em Presidente Prudente. Hoje, até mesmo o áspero Gre-nal está curtindo uma rentável e plastificada caravana pelo interior gaúcho. A descaracterização das culturas (futebolística ou não) é outra arma venenosa da nova ordem. E como afirmou Bury, os exemplos sempre frutificam - bons ou ruins. “Tradição? Báh! Pensamento ultrapassado! Money? Show me, Yeah!” O tempo, realmente, se transformou em dinheiro.

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